Um naturalista diferente
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
  Se bem me recordo, eu já escrevi aqui sobre alguns expoentes do 
jusnaturalismo. Pelo menos sobre Hugo Grócio (1583-1645), Samuel 
Pufendorf (1632-1694) e, mais recentemente, sobre Lon Fuller 
(1902-1978). Desse último, tenho certeza que sim.
  Como a minha 
intenção, nas nossas próximas conversas, é tratar de alguns juristas da 
França, uso essa deixa para falar de um jusnaturalista diferente, 
nascido nesse agradabilíssimo país: Jean Domat (1625-1696). 
  
Domat nasceu na cidade de Clermont-Ferrand, situada quase no centro da 
França. Sob a proteção de um tio-avô, o padre Jesuíta Jaques Sirmond 
(1559-1651), confessor do rei Luís XIII (1601-1643), Domat foi, ainda 
jovem, estudar em Paris. Estudou direito em Bourges. Voltou à sua 
Clermont para advogar. Ali, a partir de 1657, por quase trinta anos, foi
 “Advogado do Rei” (uma espécie de magistrado de então). Em 1681, 
contemplado com uma pensão vitalícia pelo rei Luís XIV (1638-1715), 
voltou a Paris. Sua obra magna foi “Les Lois Civiles dans leur Ordre 
Naturel” (publicada entre 1689 e 1694). Teve ainda publicados 
postumamente pelo menos mais dois importantes trabalhos: “Le Droit 
Public” (1697) e “Legum Delectus” (1700). 
  Domat tornou-se, sem 
dúvida, um homem do direito. Mas não foi fácil essa vocação. Ligado aos 
mestres do famoso convento cisterciense de Port-Royal, amigo do grande 
Blaise Pascal (1623-1662), seu conterrâneo e com quem partilhava o amor 
pelos números, teve de resistir bravamente à tentação de se tornar um 
homem da ciência (e aqui falo das ciências exatas, sobretudo a 
matemática). 
  O direito, em seus vários matizes, agradece. 
  Primeiramente, o direito natural, do qual Domat é considerado um dos 
seus baluartes. Sobretudo em seu “Les Lois Civiles dans leur Ordre 
Naturel”, Domat analisa a tradição romanística à luz do direito natural.
 Um direito natural identificado não apenas com a razão, mas, também, 
com critérios da ética, decorrentes da sua grande fé religiosa de cunho 
jansenista. É com base nesses valores ou regras de direito natural, já 
presentes em grande medida naquilo que nos foi transmitido por antigas 
(leia-se, aqui, pelos textos do direito romano) e diferentes 
civilizações, que ele tenta estabelecer os princípios fundamentais do 
direito francês. Teve bastante sucesso nisso. 
  Mas agradece 
também o direito positivado francês. Domat, como registra o 
“Dictionnaire historique des juristes français (XIIe-XXe siècle)” 
(publicado pela PUF – Presses Universitaires de France, sob a direção de
 Patrick Arabeyre, Jean-Louis Halpérin e Jacques Krynen, em 2007), foi 
até chamado de o “precursor do Código Civil”. De fato, como anota 
Antonio Padoa Schioppa (em “História do direito na Europa: da Idade 
Média à Idade Contemporânea”, edição da WMF Martins Fontes, 2014), 
“mesmo que seu pensamento, pelos motivos indicados [vide parágrafo 
anterior], não possa ser qualificado como de orientação liberalista nem 
em economia nem em ética, não poucas das regras que ele exprimiu – 
especialmente em matéria de contratos – serão acolhidas, em um contexto 
histórico e econômico muito diferente, pelo Código napoleônico e pela 
doutrina posterior do direito civil até o final do século XIX”.
  
Por último – e, para mim, o mais importante –, agradece a própria 
ciência do direito. Domat parecia ter, já à sua época, uma preocupação 
com o método de fazer direito. Antes de mais nada, ele procurou 
conciliar a tradição da Escola Culta (a crítica histórica e a discussão 
filológica dos textos romanos) com os problemas da prática jurídica de 
então. Mas é sobretudo a sua forma “lógica” de enxergar e de organizar o
 direito que viria a preencher uma necessidade da era vindoura, marcada 
pela unificação sistematizada das regras jurídicas de todo um direito 
num só documento, que nos acostumamos a chamar simplesmente de “código”.
 Foi buscando compreender a “lógica do direito” que Domat embarcou na 
aventura de “Les Lois Civiles dans leur Ordre Naturel”. E sua grande 
sacada aí, como registra Jean-Marie Carbasse (em “Que sais-je? Les 100 
dates du droit”, editora PUF, 2015), foi “apresentar o ‘direito civil’ 
(isto é, o direito romano) numa ordem conforme esta lei natural. De 
onde, o título: Les Lois Civiles dans leur Ordre Naturel. Sob a 
influência de Pascal e de outros jansenistas (em particular Pierre 
Nicole, autor junto com Antoine Arnaud da famosa Logique de Port-Royal),
 ele considera o método geométrico (mos geometricus) como aplicável a 
todas as ciências, a começar pelo direito. A ordem natural do direito é 
assim uma ordem geométrica, ou ao menos uma ordem perfeitamente lógica, 
em que as preposições demonstrativas se encadeiam umas às outras num 
rigor perfeito. O resultado é uma excepcional sistematização das regras 
romanas que exercerá uma grande influência sobre a doutrina do século 
XVIII e que inspirará, em seguida, ao menos em certos pontos (por 
exemplo, a responsabilidade civil), os redatores do Código Civil”. 
  Bom, já àquela época, misturando natureza e lógica, direito natural e o
 que há de mais moderno no positivismo jurídico, Jean Domat foi um 
jurista diferente, não foi?
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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