Grandes e pequenos crimes
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
 As estatísticas da criminalidade estão aí. Entre nós, de fato, a coisa 
não vai bem. Por exemplo, no “Atlas da Violência”, do Instituto de 
Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, eu constatei que, no Brasil, só em 
2017, foram 65.602 homicídios. E a solução para minorar esse gravíssimo 
problema, podem ter certeza, não é armar a minha tia Neusa ou o padeiro 
da esquina com uma pistola automática. 
 Mas isso – a questão de armar ou não a população contra a criminalidade – é outra história.
 Fiz essa pequena introdução para tratar de outra questão: a curiosidade
 do público pelos tipos e atos criminosos, que no Brasil existem em 
abundância, e como isso acaba virando literatura. 
 Na verdade, 
como registra Enrico Ferri (1856-1929), em seu “Os criminosos na arte e 
na literatura” (Ricardo Lenz Editor, 2001), “na vida, com efeito, o 
subsolo da criminalidade é constituído pelo inumerável pulular daquilo 
que se poderia chamar os micróbios do mundo do crime. Ao contrário dos 
micróbios do mundo biológico, aqueles passariam desconhecidos e 
anônimos, e suas aparições, desaparições e reaparições rápidas, sob a 
lente opaca das audiências do tribunal de polícia ou entre os muros mais
 ou menos úmidos dos calabouços, não deixariam qualquer traço, se a 
estatística os esquecesse”.
 Entretanto, vez por outra, anota o 
mesmo Ferri, entre esse amontoado de pequenos delitos cotidianos 
“sobressaem as fisionomias monstruosas ou loucas e, por vezes, geniais 
que, tornadas populares e minunciosamente descritas pela imprensa 
cotidiana e pela crônica judiciária, são definitivamente fixadas pela 
fantasia de um artista num drama, num romance ou num melodrama”. 
 Esse tipos e atos criminosos, tidos por “geniais”, ganham primeiro as 
páginas dos jornais, outrora impressos, hoje televisados ou digitais. 
Houve um tempo – e eu sou desse tempo – em que as páginas policiais dos 
nossos impressos, entre os quais esta Tribuna do Norte, eram as mais 
“desejadas” pelo público ávido de sensação. Era a crônica da cidade, das
 delegacias e dos tribunais, que ganhava, com a sucessão de dias, quase a
 forma de folhetim. 
 Houve até quem fizesse disso – da crônica 
jornalística policial – grande literatura. Truman Capote (1924-1984), 
com o seu “A Sangue Frio” (“In Cold Blood”, 1966), que descreve o 
assassinato de uma família no interior do estado do Kansas, nos Estados 
Unidos da América, é um exemplo disso. E sobre esse Capote, qualquer 
dia, conversaremos aqui.
 De toda sorte, afastando-se da crônica 
jornalística policial – que supõe-se estar em consonância com a 
“verdade” dos fatos –, esses tipos e atos criminosos, que fogem do 
vulgar, de tão “bons”, acabam ganhando, para a posteridade, os traços e 
as cores da ficção. Esses crimes, desde sempre atrozes, mas agora 
sentimentalmente aperfeiçoados, acabam destinados à imortalidade na 
grande arte de um grande autor. Outrora nos tão adorados folhetins (vide
 o caso de Émile Gaboriau, sobre quem escrevi no domingo passado). 
Depois em romances de fôlego ou peças de teatro. 
 Na ficção 
policial – e, até mais especificamente, na ficção forense –, de fato, 
muito comumente, a arte imita a vida. Eu já até tratei disso aqui, 
falando da queridíssima Agatha Christie (1890-1976), que, para escrever 
algumas das suas mais badaladas obras – vide os casos do romance “Murder
 on the Orient Express” (de 1934) e da peça “The Mousetrap” (premiere em
 1952) –, teve por inspiração, ao menos como pano de fundo dos seus 
enredos, crimes de fato ocorridos.
 De toda sorte, para encerrar o
 dia de hoje, tiro ainda duas conclusões. Mesmo no crime, se você quer 
ser famoso, é preciso ser grande. Crimes e privações as mais diversas 
restam ignoradas do grande público, ante a desatenção geral para as 
coisas miúdas, no velocíssimo ritmo da vida cotidiana. A história dos 
pequenos crimes e dos pequenos criminosos, até nisso relegados na vida, 
cai invariavelmente no esquecimento. Já os grandes crimes e os grandes 
dramas judiciários são “todo-poderosos sobre a imaginação e sobre os 
sentimentos do povo”, como descreve poeticamente o grande Enrico Ferri. 
Eles excitam a curiosidade pública, revivendo na massa (leitores ou 
não), mesmo que inconscientemente, lembranças hereditárias de instintos 
criminais, violências individuais ou coletivas das quais o ser humano é 
capaz, que hoje apenas disfarçamos com um ligeiro verniz esfumaçado de 
civilização.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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