O novo provincialismo
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
  O nosso Câmara Cascudo (1898-1986) sempre aceitou de bom grado o 
“título” que lhe foi dado, carinhosamente, pelo amigo Afrânio Peixoto 
(1876-1947) – “O provinciano incurável”.
  Gabava-se dele. E até 
escreveu uma crônica com esse título, publicada lá pelo final da década 
1960: “Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade. 
Convivências dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos 
do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. 
Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. 
Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço. Percepção 
medular da contemporaneidade. Nossa casa no Tirol hospedou a Família 
Imperial e Fabião das Queimadas, cantador que fora escravo. Intimidade 
com a velha Silvana, Cebola quente, alforriada na Abolição. Filho único 
de chefe político, ninguém acreditava no meu desinteresse eleitoral. 
Impossível para mim dividir conterrâneos em cores, gestos de dedos, 
quando a terra é uma unidade com sua gente. Foram os motivos de minha 
vida expostos em todos os livros. Em outubro de 1968 terei meio século 
nessa obstinação sentimental. Devoção aos mesmos santos tradicionais. 
Nunca pensei em deixar minha terra. (…). Fiquei com essa missão. Andei e
 li o possível no espaço e no tempo. Lembro conversas com os velhos que 
sabiam iluminar a saudade. Não há um recanto sem evocar-me um episódio, 
um acontecimento, o perfume duma velhice. Tudo tem uma história digna de
 ressurreição e de simpatia. Velhas árvores e velhos nomes, imortais na 
memória”.
  Esse provincialismo, o de Cascudo, o de quem apenas 
não quer deixar a sua terra por amor a ela, era de ouro. Primeiramente 
porque, como disse o grande Tolstói (1828-1910), “se queres ser 
universal, começa por pintar a tua aldeia”. Em segundo lugar, porque foi
 duramente forjado, nas palavras do próprio Cascudo, em “Livros. Cursos.
 Viagens. Sertão de pedra e Europa”. Cascudo estudou muito e conhecia a 
“arte da viagem”.
  Hoje, entretanto, vivemos um outro tipo de 
provincialismo, terrível, que, por incrível que pareça, é fomentado pela
 própria globalização, em especial a globalização digital. 
  Um 
dos que apontam isso é o filósofo e professor alemão Peter Sloterdijk 
(1947-). Autor da trilogia “Esferas” – composta por “Bolhas” (2011), 
“Globos” (“2014) e “Espumas” (2016) –, Sloterdijk pretende aí contar a 
história da humanidade. Uma de suas teses é a de que o homem necessita 
viver em “espaços íntimos”, de proteção, que funcionariam como bolhas. 
Primeiro é o útero materno. Depois as cavernas dos nossos ancestrais, a 
família e até mesmo o país ou a nação. O problema é que a atual 
globalização – que, de resto, para Sloterdijk, é apenas uma terceira 
onda, já antecipada pela globalização da filosofia grega e da 
globalização náutica dos séculos XV e XVI – diferentemente do 
megacosmopolitismo da segunda onda (a náutica dos grandes ibéricos), tem
 criado, a partir de suas muitas bolhas, um “provincialismo global”. 
  Hoje, não precisamos mais viajar, em livros ou pessoalmente, para nos 
inteirarmos do mundo. Online, um “mundo” chega a nós. Mas é um mundo – 
ou vários mundos – forjado(s) a partir de bolhas. De províncias, se 
quisermos ser mais chiques. Que não se comunicam. Por gente cada vez 
menos aberta. Cada vez menos investigativa. Cada vez mais 
preconceituosa. Não temos mais o homem estudado, viajado ou cosmopolita 
como sinônimo de cultura. Estamos, sim, vendo o “idiota da aldeia” – 
aquele que ganhou voz com a Internet, como anotou Umberto Eco 
(1932-2016) – ganhar a ribalta e espalhar as vulgaridades, deveras 
“provincianas”, que aprendeu na sua bolha. E, desapercebidamente, nós 
aceitamos isso. 
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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