Muito obrigado. E até um dia.  
 
  
 
Nunca fui tão feliz quanto naquele tempo, quando todos que eu 
conhecia eram vivos. Criança e adolescente, o meu lugar era o Colégio 
Imaculada Conceição, da minha tia Carmen. Era deixado ali todos os dias,
 muito cedinho. Assistia e atrapalhava as aulas. Jogava bola na célebre 
quadra coberta e onde mais podia. Fazia judô com meus primos. Comia na 
velha cantina ou na mesa das irmãs. Corria até a casa dos meus avós na 
mesma avenida Deodoro. E até me aventurava, sem o conhecimento da tia 
diretora ou de meus pais, por uma Cidade Alta cheia de rostos e gostos 
duvidosos. Voltava para casa só tarde da noite, fatigado, qual o 
elefante do poeta, mas feliz. Muito feliz. Naquele tempo em que todos 
que eu conhecia eram vivos.  
  
Nunca ganhei tanto como naquele tempo. Aprendi a contar e a 
escrever. Descobri um pouco da geografia dos povos e mais ainda da nossa
 própria história. Entendi que a vida se faz com ciência, inspiração e 
trabalho. Passei a não duvidar dos bichos, com exceção dos humanos. No 
Colégio Imaculada Conceição da minha tia Carmen, com as santas irmãs 
doroteias e os nossos muitos professores, seres cheios de luz, fiz 
amigos para toda a vida. Num tempo em que todos que eu conhecia me 
ensinavam a ter fé.  
  
Tive de sair dali para a Universidade. Todos nós – meus primos e 
meus colegas de classe, de bola e de arengas – tivemos de fazer isso um 
dia. Fui trabalhar fora. Fui estudar mais longe ainda. Viajei muito. 
Acho que até demais. Mas voltei ao Colégio Imaculada Conceição 
muitíssimas vezes. Para dar chutes naquela velha quadra coberta. Ou para
 levar e trazer tia Carmen de sua visita quase diária à casa da sua irmã
 (e também minha tia) Neusa. E nessa época quase todos que eu conhecia 
ainda eram vivos.  
  
Para a irmã Carmen, tenho certeza, encerrou-se uma etapa da vida 
com o fechamento do Colégio Imaculada Conceição. Se foi a Cristo e a 
Santa Paula Frassinetti que ela dedicou sua devoção, foi ao CIC e à 
comunidade das Irmãs Doroteias que ela dedicou toda sua vocação. O seu 
amor, que era também enorme, ela dividiu com todos nós, familiares e 
amigos.  
  
Agora, no ciclo e círculo de Deus e da vida, veio o momento de ela 
partir para a sua última viagem. Pela sua idade avançada, 91 anos 
completos, a indesejada veio a galope. A tia que nos ensinou os 
primeiros passos, de repente parou de andar. A madre que, mesmo nos 
momentos mais injustos da vida, praticou o silêncio apenas por opção, de
 repente desaprendeu a falar. Ficou cada vez mais debilitada. Foram 
quatro ou cinco meses, uma dia após o outro, lutando contra a solução 
inexorável. Vi o empenho das minhas primas para que nada faltasse à 
querida tia. Na nova casa da rua Açu, vi a luta diária das irmãs 
doroteias (sua outra família, por opção) e das suas alegres cuidadoras. 
Assisti aos cuidados da direção e da equipe médica nos seus dias de 
internação na Casa de Saúde São Lucas. E nem preciso falar da 
preocupação constante, mesmo sem saber de muita coisa, mas intuitiva, da
 minha mãe. Eles e elas se doaram e fizeram de tudo. Mas não deu. Tia 
Carmen foi para junto dos pais, dos irmãos de sangue já falecidos, das 
suas irmãs de fé já desencarnadas, de Santa Paula e de Deus.  
  
De minha parte, só tenho a agradecer a tia Carmen e a Deus por ter 
estado muito próximo dela nos seus últimos dias. É verdade que aquele 
olhar que me seguia, pedindo não sei dizer o que, me cortava o coração. 
Também não foi fácil esconder da minha mãe a gravidade da coisa. E ainda
 me pego chorando ao lembrar – e sentir, num misto de aflição e saudade –
 os seus últimos momentos no hospital. Mas tia Carmen, mesmo nesses 
últimos meses de despedida, ainda me deu e ensinou muito: reuniu de novo
 nossa família, me deu muitos sorrisos enquanto alisava o nosso cão (que
 ela tanto amava), me deu esperança de sairmos daquele martírio 
hospitalar, me fez querer ser bom e me permitiu retribuir, ainda que 
minimamente, tudo aquilo que ela – numa mistura de mestra, tia, madrinha
 e segunda mãe – fez em abundância por mim.  
  
Ontem voltei à casa das irmãs doroteias, talvez inconscientemente 
querendo que tudo isso não passasse de um sonho, e eu ainda pudesse 
pegar tia Carmen para dar mais uma volta de carro pelas estradas e 
esquinas da nossa memória. Espero um dia poder encontrá-la novamente. 
Quando todos aqueles que eu conheci estarão juntos de novo.  
 Marcelo Alves Dias de Souza
 Procurador Regional da República
 Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
 Mestre em Direito pela PUC/SP | 
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