Sobre Hugo Grócio
 A Holanda nos deu um dos mais célebres juristas de todos os tempos: 
Hugo Grócio (1583-1645), que é considerado um dos pais do jusnaturalismo
 moderno e do direito internacional como hoje conhecemos. No meu tempo 
de UFRN, lá se vão mais de vinte anos, aqui e acolá, nas aulas de 
introdução ao estudo do direito, filosofia do direito e direito 
internacional, sempre ouvíamos falar desse tal Hugo, também nominado 
Grotius ou Groot.
 
 Nascido em 1583, Hugo Grócio é natural da cidade de Delf, que fica 
no sul da Holanda, mais precisamente entre as mais famosas (cidades) de 
Roterdã e Haia. Filho de pais muito cultos e influentes, Grócio foi 
desde muito cedo apresentado a Aristóteles (384aC-322aC) e à filosofia 
humanista. Menino prodígio, começou formalmente a estudar direito aos 
onze anos de idade, em 1594, na Universidade de Lieden, a mais antiga do
 seu país natal. Formou-se aos quinze anos, em 1598, tanto pela 
Universidade de Lieden como pela Universidade de Orleans, na França, 
onde esteve acompanhando missão diplomática de seu país perante a corte 
do rei francês Henrique IV (1553-1610). As histórias (ou lendas) sobre a
 genialidade do “menino” holandês são inúmeras.
 
 Hugo Grócio começou sua carreira como advogado em Haia em 1599. Dois
 anos mais tarde, tornou-se historiador para o Estado holandês. Sua 
ligação com o direito internacional tornou-se estreita e definitiva em 
1604, quando foi apontado para defender o Estado holandês, que havia 
“sequestrado” o navio português Santa Catarina, no estreito de 
Singapura, em meio às guerras entre Espanha e Holanda. No mesmo ano de 
1604, foi nomeado conselheiro do príncipe Maurício de Orange-Nassau 
(1567-1625).
 
 Casou-se em 1608. Entre outras coisas, foi procurador-geral do Fisco
 holandês e prefeito da cidade de Roterdã. Em 1618, envolvido em 
questões teológicas, ao lado Johan van Oldenbarnevelt (1547-1619) e em 
oposição a Maurício de Orange-Nassau, acabou preso. Em 1619, foi 
sentenciado à prisão perpétua. Em 1620, foi declarado culpado de “laesa 
majestas”. Fugiu para Paris nesse mesmo ano. Voltou à Holanda em 1631. 
Fugiu novamente, em 1632, para a Alemanha. Por anos, trabalhou como 
diplomata para a Suécia. Além de homem público e jurista, foi também 
poeta, dramaturgo, filósofo e teólogo. Faleceu em 1644, em Lubeck, na 
Alemanha.
 
 Grócio escreveu inúmeros livros. O primeiro deles, aos dezesseis 
anos, foi de anotações e correções acadêmicas sobre livro do escritor 
latino Martianus Capella (nascido e falecido entre os séculos IV e V dC.
 Em 1604 (ou 1605), veio o que muitos chamam de seu primeiro livro 
(considerando que a obra anteriormente citada foi de anotações e 
correções): “De indis”, que está relacionado ao já referido incidente 
com o navio português Santa Catarina. O muitíssimo famoso “Mare Liberum”
 (“Mar livre”), no qual ele defende a internacionalidade dos mares e que
 teve enorme impacto em sua época, é de 1609. Sua obra magna, pela qual 
Grócio é reverenciado até hoje, “De Jure Belli ac Pacis” (“O direito da 
guerra e da paz”), escrita no exílio na França, é de 1625. Entre essas 
datas, nas letras e sobre arte, teologia, filosofia e direito, 
registram-se outros incontáveis títulos.
 
 Acredito que a enorme e perene contribuição de Hugo Grócio para o 
direito pode ser sistematizada em três áreas: no jusnaturalismo, no 
direito internacional e, mais especificamente, no direito da guerra.
 
 Antes de mais nada, interagindo com a Escolástica espanhola, 
sobretudo com Francisco de Vitória (1483-1546) e Francisco Suárez 
(1548-1617), Grócio desenvolveu a tese, crucial para o chamado 
“jusracionalismo”, de que o fundamento do direito natural estava na 
natureza racional do homem e não em um comando de Deus. Tornou-se 
célebre a sua afirmação, constante de “De Jure Belli ac Pacis”, de que o
 direito natural seria justo e verdadeiro mesmo que Deus, por mais 
absurdo que isso fosse, não existisse. Embora derivada da Escolástica 
espanhola, a estrutura geral e muitos dos elementos da obra do famoso 
holandês são, como reconhecem os especialistas, marcadamente originais. 
No mais, devemos lembrar que o impacto das teses filosóficas e jurídicas
 no mundo circundante dependem muito do contexto histórico e social no 
qual vêm a lume; nesse ponto, Grócio tomou vantagem de um processo de 
secularização da cultura que se expandia durante o seu tempo.
 
 As ideias de Grócio tiveram grande impacto no direito internacional 
público, sobretudo naquilo que chamamos “direito do mar” e “direito de 
guerra”, que penosamente se desenvolvia no mundo cristão, onde guerras 
eram travadas, ele mesmo afirma, “com uma falta de freios vergonhosa até
 mesmo para povos bárbaros”, como se uma norma universal autorizasse a 
prática de todo tipo de crime. Acreditando na existência de princípios e
 regras fundadas na razão, compartilhadas por todos os homens, Grócio 
defendeu a ideia de uma “lei” comum para a comunidade internacional, um 
pacto a ser observado por todas as nações, que, entre outras coisas, 
contivesse essa violência sem limites.
 
 Mais especificamente, com Grócio (que se confessava chocado com as 
atrocidades das guerras entre a Espanha e a Holanda e entre católicos e 
protestantes), como explica Antonio Padoa Schioppa (em “História do 
direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”, edição da WMF 
Martins Fontes, 2014), “os temas clássicos do direito de guerra e do 
conceito de guerra justa – mesmo que, em princípio, o autor 
compartilhasse a ideia de que 'a guerra está muito distante de qualquer 
princípio de direito' – recebiam, na base teórica que já abordamos, uma 
organização nova: é o que acontece com os capítulos sobre os 
prisioneiros de guerra, sobre o butim, sobre o valor da palavra 
empenhada e da confiança (fides) entre os inimigos, sobre as represálias
 e assim por diante, análises nas quais o exame dos costumes se faz 
acompanhar de enunciação das possíveis atenuações que os tornem menos 
arbitrários e menos duros”.
 
 Bom, Grócio, com sua “vida de desterrado” e as suas polêmicas, 
estava certo em muitas coisas. O curioso é que, ao falecer, ele teria 
dito: “mesmo tendo compreendido muitas coisas, nada realizei”. Nesse 
ponto, que ele me desculpe, estava errado. O tal Hugo do meu tempo de 
UFRN fez muito pelo direito.
 
 Marcelo Alves Dias de Souza
 Procurador Regional da República
 Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL
 Mestre em Direito pela PUC/SP 
 | 
Nenhum comentário:
Postar um comentário