06/09/2018


  
Marcelo Alves


As regras do policial

A questão do gênero ou da tipologia da literatura é bastante controversa. Grandes obras normalmente não se conformam às regras do gênero; e muitos críticos literários sequer reconhecem a existência desse conceito (de gênero da literatura). Sobre essa polêmica, aliás, eu escreverei aqui qualquer dia desses. Prometo. 

O fato é que a literatura policial ou detetivesca, como literatura de massa, não tem nada a ver com isso. Ela é um gênero bem definido. Como anota Tzvetan Todorov (1939-2017), em “Poética da Prosa” (Editora Martins Fontes, 2003): “Geralmente, a obra-prima literária não se encaixa em nenhum gênero literário, a não ser em seu próprio [Todorov dá como exemplo disso a ‘Cartuxa de Parma’, cujo gênero, se é que ele pode ser enquadrado em algum, não será outro senão o do ‘romance stendhaliano’]; mas a obra-prima da literatura de massa é precisamente o livro que melhor se inscreve em seu gênero. O romance policial tem suas normas; fazer ‘melhor’ do que elas exigem é o mesmo que fazer pior: quem quiser ‘embelezar’ o romance policial, faz ‘literatura’ e não romance policial. O romance policial por excelência não é aquele que transgride as regras do gênero, mas aquele que a elas se conforma: No Orchids for Miss Blandish é uma encarnação do gênero, não uma superação”. 

Isso mesmo: o romance policial ou detetivesco tem suas regras. Para quem não sabe, essas regras foram propostas por um tal Willard Huntington Wright (1888-1939), que, na história da ficção policial, restou conhecido pelo pseudônimo de S. S. Van Dine. Como autor de romances do gênero, Van Dine, com o seu detetive Pilho Vance, foi muito popular nas décadas de 1920 e 1930. E essas regras, ele as publicou faz muito tempo, precisamente em setembro de 1928, na revista “The American Magazine”. 

Diz-se comumente que um romance policial pressupõe um crime, uma vítima, um culpado e, claro, um detetive (seja ele profissional, como de regra, ou amador). Medo, inquietação, mistério, uma boa dose de curiosidade e, claro, uma investigação – esses são elementos recorrentes em quase todos os romances policiais. Mas S. S. Van Dine relacionou pelo menos vinte regras às quais um autor deve se conformar, se quer fazer parte do “clube” dos romancistas policiais. Entre outras coisas: o detetive nunca é o culpado (ou, pelo menos, nunca deve ser); ele e o leitor devem ter a mesma chance de descobrir o criminoso; evitando trapaças, o mistério deve ser explicado de uma maneira plausível; a intriga amorosa ou discussões filosóficas mais profundas não compõem o centro da trama; este é ocupado pelo crime e o seu entorno; e por aí vai. 

As regras de Van Dine foram repetidas e debatidas pela posteridade; contestadas muitas vezes. Tzvetan Todorov, referido mais acima, as acha, pelo menos, redundantes. De fato, a lista de regras de Van Dine é enorme e, confesso, tive preguiça de reproduzi-las aqui. E Todorov nos poupa o trabalho, sintetizando elas em oito assertivas: “1. O romance deve ter no máximo um detetive e um culpado, e no mínimo uma vítima (um cadáver). 2. O culpado não deve ser um criminoso profissional; não deve ser o detetive; deve matar por motivos pessoais. 3. O amor não tem lugar no romance policial. 4. O culpado deve gozar de certa importância – a) na vida: não ser um criado ou uma camareira; b) no livro: ser um dos personagens principais. 5. Tudo deve explicar-se de modo racional; o fantástico não é admitido. 6. Não há lugar para descrições nem para análises psicológicas. 7. É preciso conformar-se à seguinte homologia quanto às informações sobre a história: ‘autor : leitor = culpado : detetive’. 8. É preciso evitar as situações e as soluções banais (Van Dine enumera dez delas)”. 

No mais, algumas dessas regras se aplicam a todos os romances policiais; outras, não. E aqui refiro-me àquela clássica divisão desses romances em policiais de enigma e policiais noir (vide meus artigos “Enigma ou noir?” e “Um terceiro tipo?”). Como explica o mesmo Todorov: “Se compararmos esse inventário com a descrição do romance noir, descobriremos um fato interessante. Uma parte das regras de Van Dine aparentemente relaciona-se com qualquer romance policial, outra, com o romance de enigma. Essa divisão coincide, curiosamente, com o campo de aplicação das regras: as que concernem aos temas, à vida representada (a ‘primeira história’) limitam-se ao romance de enigma (regras 1-4a); as que se relacionam com o discurso, com o livro (com a ‘segunda história’), são igualmente válidas para o romance noir (regras 4b-7; a regra 8 é de uma generalidade bem maior). Com efeito, no romance noir muitas vezes há mais de um detetive (A Rage in Harlem [La reine des pommes] de Chester Hymes) e mais de um criminoso (The Fast Buck [Du gâteau!] de J. H. Chase). O criminoso é quase obrigatoriamente um profissional e não mata por motivos pessoais (‘o matador de aluguel’); ademais, ele muitas vezes é um policial. O amor – ‘de preferência bestial’ – também tem seu lugar. Em contrapartida, as explicações fantásticas, as descrições e análises psicológicas estão banidas; o criminoso sempre tem de ser um dos personagens principais. Quanto à regra 7, ela perdeu sua pertinência com o desaparecimento da dupla história. Isso nos prova que a evolução afetou principalmente a parte temática, e não a estrutura do próprio discurso (Van Dine não percebeu a necessidade do mistério e, por conseguinte, da dupla história, provavelmente por considerá-la óbvia)”. 

De minha parte – na vida e, sobretudo, no direito – procuro sempre cumprir as regras. Acho que todos deveriam agir assim. Estou certo de que viveríamos bem melhor. 

Mas na literatura devemos ser tão rígidos assim? No dia em que eu escrever um romance – um policial, quem sabe –, me lembrarei das regrinhas de Van Dine, embora acredite que elas podem ser suavizadas em prol de uma boa estória. Sim, podem! 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

31/08/2018

O LIVRO ORGANIZADO POR ASSIS CÂMARA




O lançamento deste livro, organizado por FRANCISCO DE ASSIS CÂMARA, traz uma série de depoimentos daqueles jovens que participaram da "República Potiguar de Montparnasse" - Marcos José de Castro Guerra, Maria Marta de Castro Guerra, Rejane Cardoso, José Augusto de Albuquerque Othon, Paul Ammann e Safira Bezerra Ammann, ocorrido ontem, no auditório da OAB-RN. 
Foi uma noite de reencontros e de resgate resgate de testemunhas da História, dos anos conturbados de nossa juventude em Paris de  1968. 
Foi servido um bufet da melhor qualidade e apresentada uma seleção musical sensacional, puxada pelo Mestre Carlos Zen. VALEU 

Em seguida, fotos da exposição de livros e revistas alusivos ao evento, que enriqueceu ainda mais a noite de alegria e confraternização.










QUINTA CULTURAL - SUCESSO

Como era esperado, a QUINTA CULTURAL do INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE, neste dia 30 passado foi indiscutivelmente um sucesso.




"O VIOLÃO - Evolução histórica e musical" foi a palestra proferida pelo Confrade CLÁUDIO GALVÃO e pelo Professor EUGÊNIO LIMA recebendo o entusiasmado aplauso dos que compareceram ao evento, aberto de forma aberta pelo Presidente ORMUZ BARBALHO SIMONETTI.




Alguns momentos da palestra e concerto, com execução virtuose do grande instrumentista/palestrante.
Uma surpresa agradável foi o convite do palestrante para que os diretores CARLOS DE MIRANDA GOMES e ODÚLIO BOTELHO cantasse estrofes da "Serenata do Pescador" (Praieira), de Otoniel Menezes e música de Eduardo Medeiros, na condição de antigos seresteiros e "meninos prodígios", nos idos de 1950 na Rádio Poti.

 

Flagrantes do público que prestigiou o evento.

Pela importância cultural desse tipo de evento, o Presidente do IHGRN vem fazendo veemente apelo aos associados através de mensagem do seguinte teor:

Caro(a) confrade/confreira/diretor,
O programa, que intitulamos de Quinta Cultural, tem grande importância para o IHGRN, eis que se trata de divulgação da nossa história e da nossa cultura, único programa em atividade no momento. Por outro lado, contamos com a colaboração de um palestrante que, de forma espontânea e gratuita, deixa os seus afazeres para colaborar com o Instituto.
Nos dirigimos a cada um de vocês que, na qualidade diretor desta Instituição, é o anfitrião da casa. Assim sendo, necessário se faz a presença de todos, para recepcionar os convidados e prestigiar o palestrante.
Contamos com a sua compreensão e colaboração.
ORMUZ BARBALHO SIMONETTI
PRESIDENTE



















29/08/2018





Marcelo Alves

Um terceiro tipo?

Os especialistas adoram classificar os romances policiais (ou detetivescos) em dois tipos: policiais de enigma e policiais noir, também chamados, respectivamente, de policiais ingleses e policiais americanos, levando em consideração os países de onde esses dois subgêneros de literatura (policial) teriam se originado. 

Da Inglaterra, na categoria de policiais de enigma, vêm, por exemplo, as estórias de Arthur Conan Doyle (1859-1930, escocês de nascença) com o seu Sherlock Holmes e de C.K. Chesterton (1874-1936) com o seu Father Brown. De lá também vem Agatha Christie (1890-1976), com os seus impagáveis Hercule Poirot e Miss Marple, que para muitos representa a quintessência do romance de enigma. Nesses policiais, via de regra, o leitor é “convidado” a desvendar o crime. Ele segue os passos e o raciocínio do detetive através de um jogo de pistas e charadas até o final, em regra, surpreendente. Pode-se dizer que o mistério é, de fato, o mais importante da estória, muito mais que o ambiente em que ela se passa (por exemplo, o ambiente das estórias de Agatha Christie é muito “saudável”, como a alta sociedade londrina, pequenas cidadezinhas inglesas ou o pitoresco oriente próximo). Já dos Estados Unidos da América vêm os clássicos do policial noir, escritos por gente como Raymond Chandler (1888-1959) e Dashiell Hammett (1894-1961), que, considerados os fundadores desse subgênero, são seguidos por outros grandes autores como James M. Cain (1892-1977) e Ross MacDonald (1915-1983). Chandler e Hammett, através dos seus detetives Philip Marlowe e Sam Spade, nos apresentam um mundo estranho – embora muitas vezes verdadeiro – de dinheiro abundante, destruição pelo álcool, casamentos falidos, fêmeas fatais e assassinatos, tudo isso misturado a um aparelho policial e judicial corrupto, enfrentado pelos seus detetives durões. Aqui, a “atmosfera” na qual estão inseridas as personagens, carregada, noir, é tão ou mais importante do que a trama em si. Alguns autores, claro, transitam com igual familiaridade entre o policial de enigma e o policial noir. Georges Simenon (1903-1989), com os seus “Maigrets”, é um exemplo disso. Simenon/Maigret, não resta dúvida, sempre nos “convidam” a desvendar o crime. Seguimos os passos do detetive e as pistas deixadas pelo autor. Mas, para Maigret, o detetive de Simenon, a atmosfera do local do crime e as peculiaridades das condutas e da psicologia dos envolvidos são também fundamentais para desvendar o mistério. 

Sob um ponto de vista bem interessante, um dos que apontam essa dicotomia entre policiais de enigma e policiais noir – e nós, pretensos juristas, adoramos as dicotomias – é o linguista e pensador búlgaro Tzvetan Todorov (1939-2017). Em “Poética da Prosa” (Editora Martins Fontes, 2003), Todorov afirma que, no dito policial de enigma, encontramos uma dualidade. Esse tipo de romance policial “não contém uma, mas sim duas histórias: a história do crime e a história da investigação. Em sua forma mais pura, essas duas histórias não têm nenhum ponto em comum. (…). A primeira história, a do crime, termina antes que a segunda comece. Mas o que acontece na segunda? Poucas coisas. Os personagens dessa segunda história, a história da investigação, não agem, só tomam conhecimento. Nada pode acontecer com eles: uma regra do gênero postula a imunidade do detetive”. Já o dito policial noir é um romance “que funde as duas histórias ou, em outras palavras, suprime a primeira e dá vida à segunda. Não nos relatam mais um crime anterior ao momento da narrativa, a narrativa coincide com a ação. Nenhum romance noir é apresentado sob a forma de memórias: não há um ponto de chegada a partir do qual o narrador abarcaria os acontecimentos passados, não sabemos se ele chegará vivo ao final da história. A prospectiva substitui a retrospectiva”. Se no policial de enigma, os seus personagens principais (o detetive e um amigo “narrador”, quase sempre) estão imunes a quaisquer vicissitudes, a situação “se inverte no romance noir: tudo é possível, e o detetive põe em risco sua saúde e até sua vida”. 

Entretanto, o próprio Tzvetan Todorov especula a existência de um terceiro tipo de romance policial, o “policial de suspense”, que teria surgido da combinação das propriedades do policial de enigma e do policial noir. Assim como no policial de enigma, o policial de suspense tem duas histórias, a do passado e a do presente. Esta, entretanto, como se dá no policial noir, é a mais importante. O leitor quer saber o que se deu antes; mas a sua atenção se volta, sobretudo, para o que vai acontecer na trama em desenvolvimento. Ele (o leitor) quer uma explicação sobre os fatos passados, ponto de partida da estória, mas está ainda mais curioso sobre o que vai acontecer, no decorrer da trama, àqueles personagens principais, que, ao contrário do que se dá no policial de enigma, estão com a vida em jogo o tempo todo. Os exemplos mais típicos desse subtipo são, a meu ver, aquilo que Todorov apelidou de histórias/estórias de “suspeito-detetive”, nas quais o autor prescinde de um detetive profissional (ou mesmo amador) como personagem principal e condutor da investigação, pondo, nessa posição, o próprio suspeito do crime. Como explica Todorov, “nesse caso, um crime é cometido nas primeiras páginas e as suspeitas da polícia recaem sobre determinada pessoa (que é o personagem principal). Para provar sua inocência, essa pessoa tem de encontrar por conta própria o verdadeiro culpado, mesmo se para isso coloca a vida em perigo. Pode-se dizer que, nesse caso, esse personagem é ao mesmo tempo o detetive, o culpado (aos olhos da polícia) e a vítima (potencial, dos verdadeiros assassinos)”. Um exemplo desse tipo de romance que me vem logo à mente é “The Thirty-Nine Steps” (1915), de John Buchan (1875-1940), que foi brilhantemente adaptado para o cinema por Alfred Hitchcock (1899-1980). Até porque sou fã do “Mestre do Suspense”. 

Mas aí é que está o problema: será que estamos mesmo diante de um terceiro tipo de romance policial? Ou seria o caso de um outro gênero de literatura, o dos romances de suspense? 

Sei lá. 

Essa divisão de gênero é sempre muito complicada.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP